A paixão livre é
irradiação sem um irradiador, é uma cordialidade fluida e penetrante que avança
sem esforço. Não é destrutiva porque é um estado equilibrado de ser e altamente
inteligente. A autoconsciência inibe esse inteligente e equilibrado estado de ser.
Se nos abrirmos, se abandonarmos essa ganância autoconsciente, veremos não só a
superfície de um objeto, mas também todos os seus aspectos interiores. Não o
apreciaremos apenas por suas qualidades sensacionais, mas o veremos em termos
de qualidades totais, que são o ouro puro. Não somos engolfados pela
exterioridade, mas ver o exterior nos empurra simultaneamente para o interior.
Dessa forma, atingimos o âmago da situação, e, se ela é o encontro de duas
pessoas, o relacionamento é muito estimulante, pois não vemos o outro
simplesmente em termos de atração física ou de padrões habituais: nós vemos
tanto seu exterior como seu interior.
Esse processo de comunicação onipenetrante poderá
causar um problema. Suponhamos que vejamos alguém direta e inteiramente e que
essa pessoa, não querendo ser vista tão intimamente, fique horrorizada e fuja.
O que fazer nesse caso? Fazemos nossa comunicação de forma total e completa. Se
a pessoa foge, é essa a sua forma de comunicar-se conosco. Não investigamos
mais. Se prosseguíssemos em seu encalço, mais cedo ou mais tarde, nos
converteríamos num demônio do ponto de vista dessa outra pessoa. Enxergamos através
do seu corpo e vemos sua carne e gordura suculenta que gostaríamos de devorar,
de modo que, para ela, nós parecemos um vampiro. E quanto mais tentarmos a
perseguir, mais fracassaremos. Desejosos, talvez a tenhamos examinado de forma
muito penetrante, muito devastadora. Pelo fato de termos belos e penetrantes
olhos, paixão e inteligência perspicaz e, abusamos de nosso talento e jogamos
com isso. É um fato perfeitamente natural que as pessoas, se possuem algum
poder particular ou se são dotadas de energia hábil, abusem dessas
possibilidades, empregando-as mal ao tenta invadir todos os cantos. Nesse tipo
de abordagem está faltando algo bastante óbvio - um senso de humor. Se
procurarmos levar as coisas longes demais, isso quer dizer que não sentimos
adequadamente o terreno; apenas sentimos o nosso relacionamento com o terreno.
O que está errado é que não percebemos todos os aspectos da situação e,
consequentemente, falhamos no aspecto irônico e jocoso.
- CHÖGYAM TRUNGPA RINPOCHE (1939 - 1987) - O Mito da Liberdade e o Caminho da Meditação.