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sábado, 23 de junho de 2012

PAIXÃO


A paixão livre é irradiação sem um irradiador, é uma cordialidade fluida e penetrante que avança sem esforço. Não é destrutiva porque é um estado equilibrado de ser e altamente inteligente. A autoconsciência inibe esse inteligente e equilibrado estado de ser. Se nos abrirmos, se abandonarmos essa ganância autoconsciente, veremos não só a superfície de um objeto, mas também todos os seus aspectos interiores. Não o apreciaremos apenas por suas qualidades sensacionais, mas o veremos em termos de qualidades totais, que são o ouro puro. Não somos engolfados pela exterioridade, mas ver o exterior nos empurra simultaneamente para o interior. Dessa forma, atingimos o âmago da situação, e, se ela é o encontro de duas pessoas, o relacionamento é muito estimulante, pois não vemos o outro simplesmente em termos de atração física ou de padrões habituais: nós vemos tanto seu exterior como seu interior.
Esse processo de comunicação onipenetrante poderá causar um problema. Suponhamos que vejamos alguém direta e inteiramente e que essa pessoa, não querendo ser vista tão intimamente, fique horrorizada e fuja. O que fazer nesse caso? Fazemos nossa comunicação de forma total e completa. Se a pessoa foge, é essa a sua forma de comunicar-se conosco. Não investigamos mais. Se prosseguíssemos em seu encalço, mais cedo ou mais tarde, nos converteríamos num demônio do ponto de vista dessa outra pessoa. Enxergamos através do seu corpo e vemos sua carne e gordura suculenta que gostaríamos de devorar, de modo que, para ela, nós parecemos um vampiro. E quanto mais tentarmos a perseguir, mais fracassaremos. Desejosos, talvez a tenhamos examinado de forma muito penetrante, muito devastadora. Pelo fato de termos belos e penetrantes olhos, paixão e inteligência perspicaz e, abusamos de nosso talento e jogamos com isso. É um fato perfeitamente natural que as pessoas, se possuem algum poder particular ou se são dotadas de energia hábil, abusem dessas possibilidades, empregando-as mal ao tenta invadir todos os cantos. Nesse tipo de abordagem está faltando algo bastante óbvio - um senso de humor. Se procurarmos levar as coisas longes demais, isso quer dizer que não sentimos adequadamente o terreno; apenas sentimos o nosso relacionamento com o terreno. O que está errado é que não percebemos todos os aspectos da situação e, consequentemente, falhamos no aspecto irônico e jocoso.
- CHÖGYAM TRUNGPA RINPOCHE (1939 - 1987) - O Mito da Liberdade e o Caminho da Meditação.